Essas Notas e Observações não passam de uma coleção de injúrias contra o autor do livro Dos Delitos e das Penas, que é chamado fanático, impostor, escritor falso e perigoso, satírico desenfreado, sedutor do público. É acusado de destilar o fel mais amargo, de juntar a contradições vergonhosas os traços pérfidos e ocultos da dissimulação e de ser obscuro por perversidade. O crítico pode estar certo de que não responderei às personalidades.
Representa ele o meu livro como uma obra horrível, virulenta e de uma licença venenosa, infame, ímpia. Encontra nele blasfêmias impudentes, insolentes ironias, pilhérias indecentes, sutilezas perigosas, motejos escandalosos, calúnias grosseiras.
A religião e o respeito devido aos soberanos são o pretexto para duas das mais graves acusações que se acham nessas Notas e Observações. Serão estas as únicas às quais me julgarei obrigado a responder. Comecemos pela primeira.
I – Acusação de impiedade
1. – “O autor do livro *Dos Delitos e das Penas* não conhece essa justiça que tem origem no legislador eterno, que tudo vê e prevê”. Eis mais ou menos o silogismo do autor das Notas. “O autor do livro *Dos Delitos* não aprova que a interpretação da lei dependa da vontade e do capricho de um juiz. – Ora, aquele que não quer confiar a interpretação da lei à vontade e aos caprichos de um juiz não crê numa justiça emanada de Deus. – O autor não admite, pois, uma justiça puramente divina...”
2. – “Segundo o autor do livro *Dos Delitos e das Penas*, a Escritura santa só contém imposturas”. Em toda a obra *Dos Delitos e das Penas*, só se trata da Escritura santa uma única vez; é quando, a propósito dos erros religiosos, no capítulo XLI, eu disse que não falava desse povo eleito de Deus, para o qual os milagres mais extraordinários e as graças mais assinaladas substituíram a política humana.
3. – “Toda a gente sensata encontrou no autor do livro *Dos Delitos e das Penas* um inimigo do cristianismo, um mau homem e um mau filósofo”. Pouco me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo; os que me conhecem asseguram que não sou mau homem. Serei, então, inimigo do cristianismo, quando insisto para que a tranquilidade dos templos seja assegurada sob a proteção do governo, e quando digo, ao falar da sorte das grandes verdades, que a revelação é a única que se conservou em sua pureza, em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos?
4. – “O autor do livro *Dos Delitos e das Penas* fala da religião como se se tratasse de uma simples máxima política”. O autor do livro *Dos Delitos e das Penas* chama à religião “um dom sagrado do céu”. Será provável que ele trate como simples máxima política o que lhe parece um dom sagrado do céu?
5. – “O autor é inimigo declarado do Ser supremo”. Peço de todo meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem.
6. – “Se o cristianismo causou algumas desgraças e alguns morticínios, ele exagera-os e silencia sobre os bens e as vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre todo o gênero humano”.
Não se encontrará um único lugar no meu livro que faça menção aos males causados pelo Evangelho; não citei mesmo um só fato que com isso se relacione.
7. – “O autor profere uma blasfêmia contra os ministros da religião, ao dizer que suas mãos sujaram-se de sangue humano”. Todos os que escreveram a história, desde Carlos Magno[^1] até Otão-o-Grande[^2], e mesmo depois desse príncipe, proferiram muitas vezes a mesma blasfêmia. Ignorar-se-á que, durante três séculos, o clero, os abades e os bispos não tiveram escrúpulo algum em marchar para a guerra? E não será o caso de dizer, sem blasfemar, que os eclesiásticos que se achavam no meio das batalhas e que participaram da carnificina sujavam as mãos de sangue humano?
Notas de rodapé:
1. Carlos Magno (742-814) – Rei dos francos, dos lombardos e imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Ele é conhecido por unificar grande parte da Europa Ocidental e Central durante a Idade Média.
2. Otão I, o Grande (912-973) – Rei da Germânia e primeiro imperador do Sacro Império Romano-Germânico, consolidou o poder na Europa central e estabilizou as fronteiras do Império.
3. Graciano (359-383) – Imperador romano, governou de 375 a 383. Sua legislação influenciou o direito romano em várias áreas, incluindo o crime de lesa-majestade.
4. Valentiniano I (321-375) – Imperador romano do Ocidente, reconhecido por suas reformas militares e administrativas.
5. Teodósio I, o Grande (347-395) – Último imperador a governar o Império Romano unido, conhecido por tornar o cristianismo a religião oficial do Império Romano.
6. Arcácio (377-408) – Filho de Teodósio I e imperador do Oriente, seu governo foi marcado pela influência de conselheiros e pela perda de poder imperial.
7. Severo Alexandre (208-235) – Imperador romano, conhecido por seu governo relativamente pacífico e por tentar restaurar a autoridade do Senado.
8. Antonino Pio (86-161) – Imperador romano, seu reinado é frequentemente lembrado como um dos mais pacíficos da história romana.
9. Domiciano (51-96) – Imperador romano, governou com mão de ferro, impondo uma política autoritária que resultou em sua própria morte e posterior condenação pela memória pública.
10. Tibério (42 a.C.-37 d.C.) – Segundo imperador romano, conhecido tanto por suas reformas administrativas quanto por seus últimos anos de governo, marcados pela paranoia e repressão.
11. Henrique VIII (1491-1547) – Rei da Inglaterra, conhecido por romper com a Igreja Católica e por suas seis esposas, uma das quais foi executada por crime de lesa-majestade.
12. Suetônio (69-122) – Historiador romano, autor da obra "A Vida dos Doze Césares", uma fonte vital sobre os primeiros imperadores romanos.
13. Teodósio, o Grande (cit. na nota 5) – No fim do século IV, Teodósio fez reformas para conter a violência cometida pelos frades contra criminosos.
14. Ludovico Antonio Muratori (1672-1750) – Historiador e erudito italiano, autor dos "Annali d’Italia", uma obra monumental que narra a história da Itália desde a Antiguidade até o século XVIII.
15. Deodoro Sículo (90 a.C.-30 a.C.) – Historiador grego, autor da "Bibliotheca Historica", que abrange a história do mundo desde o seu início até o tempo de Júlio César.
16. Estrabão (64 a.C.-24 d.C.) – Geógrafo e historiador grego, autor da obra "Geografia", que descreve o mundo conhecido da época.
17. Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.)** – Historiador romano, autor de "Ab Urbe Condita", que narra a história de Roma desde sua fundação até o início do Império.
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